Leia a seguir um trecho da obra
O Graxaim, que não era um cachorro do mato mas um cruzamento de Border Collie com Cocker Spaniel, assim nomeado pelo Sr. Kauder, agia de forma estranha naquela manhã. Ao sair para a caminhada diária, o dono não o encontrou próximo ao portão, como era seu costume, teve de buscá-lo no canil, nos fundos da propriedade, e atribuiu o comportamento inusitado à primeira onda de frio que chegara naquela noite. Depois, na caminhada, passou pela entrada do parque do Bacacheri, o destino de todas as manhãs, e seguiu pela rua Nicarágua para além das construções da Ordem Rosa Cruz. Ao chegar ao final da rua, o cão parou, olhou para os dois lados, como se quisesse seguir adiante mas não sabia qual caminho a tomar, então o erudito Kauder deu meia volta e iniciou o retorno no que foi seguido pelo cão, mas ele já não ia à frente ou ao lado do dono, vinha atrás, a contragosto, como se pressentindo o que estava por acontecer, quisesse postergar ao máximo o desenrolar dos acontecimentos.
Em casa, o erudito renovou a água do cão, fez algumas atividades domésticas e então foi à biblioteca para retomar seus trabalhos. Estava em meio as pesquisas para um ensaio que abordaria as relações ou a influência exercida pela obra de Shakespeare no romantismo europeu. Sobre a mesa, que na realidade era uma porta disposta sobre dois cavaletes e que ocupava o centro do cômodo, dezenas de livros relacionados ao período que pesquisava, também livros de Shakespeare e ensaios críticos sobre sua obra. No decorrer da semana, era uma sexta-feira, o erudito fez inúmeras leituras e releituras, registrou passagens e ideias, buscou referências sobre outros estudos, separou as obras que manteria junto a si daquelas que poderia devolver às prateleiras; e foi isso que resolveu fazer em primeiro lugar naquela manhã.
A organização de uma biblioteca particular respeita critérios ligados aos interesses e às idiossincrasias do proprietário, que pode ou não seguir as regras tradicionais normalmente utilizadas nas bibliotecas, grosso modo, a ordenação dos livros por gênero e por autor. O erudito usava um critério pessoal, que pode ser definido como por afinidade com seus interesses, e o centro de seu interesse era Shakespeare. As obras desse autor ocupavam um lugar privilegiado em sua biblioteca, e as demais, independente de serem de teatro, ficção, crítica literária, filosofia, arte, história, gravitavam em torno destas na medida que se aproximavam ou se distanciavam, sempre em sua avaliação pessoal, da obra de Shakespeare. Coleções específicas eram organizadas em separado e, por razões práticas, volumes em grandes dimensões ficavam dispostos na parte superior das estantes. O problema com que se deparam os bibliófilos, e o erudito Kauder era um deles, é que à medida que o acervo cresce, os espaços originalmente destinados às obras se tornam insuficientes e elas começam a ser realocadas para outras estantes e depois outros cômodos, já que a voracidade de um bibliófilo não respeita o espaço oferecido pela biblioteca. Os livros que o erudito desejava devolver às prateleiras eram daqueles que ocupavam estantes em outro cômodo, no caso, seu quarto, cujas paredes, assim como as paredes dos demais cômodos da casa, exceção feita ao banheiro e à cozinha, eram cobertas por estantes e livros. O erudito levou os livros até o quarto e os dispôs parte sobre a cama, encostada à parede oposta, e parte sobre o criado-mudo, que aproximara das estantes. Iniciou então a devolução dos volumes aos respectivos lugares, primeiro aqueles cujas prateleiras estavam ao alcance da mão, depois aproximou da estante uma banqueta plástica para guardar os livros que ficavam nas prateleiras mais altas. O mais recomendável seria o uso de uma escada, mas a tinha deixado no pátio dos fundos quando precisou trocar uma lâmpada na tarde anterior. O erudito dispôs cada um dos volumes a serem colocados na parte alta da estante sobre livros de prateleiras mais abaixo, depois subiu na banqueta e começou a recolocar os volumes no espaço a eles reservado. Súbito, um estalo seco, baixo e agudo, ressoou no quarto e o erudito pressentiu a queda, uma das pernas da banqueta partira-se. Instintivamente largou o volume que tinha em mãos e segurou-se na estante, mas o apoio que ela lhe ofereceu foi breve, seus dedos escorregaram e ele foi ao chão. O Sr. Kauder tinha exatos um metro e oitenta centímetros de altura e pesava setenta e seis quilos, e um corpo com esse peso, ao cair de uma altura de quarenta e cinco centímetros, tento seu ponto mais alto a dois metros e vinte e cinco centímetros do solo, sofre uma aceleração provocada pela gravidade que faz o impacto da queda ser maior e, associada a fragilidade natural de uma pessoa com 83 anos de vida, pode provocar ferimentos sérios. O erudito experimentou durante a queda uma sensação de que o tempo passava diferente, lentamente, de modo que ela pareceu durar mais do realmente durou e foi acompanhada por um barulho, que se assemelhava a um chiado provocado por madeira partindo-se. Ele caía de costas e bateu com o ombro direito no criado-mudo que havia deslocado para próximo das estantes. Inicialmente não sentiu dor, embora o choque tenha lhe causado uma luxação, apenas sentiu seu corpo girar, ficando de bruços ao atingir o chão. O que a princípio poderia ser considerado sorte, o choque primeiro com o criado-mudo e o consequente amortecimento da queda, revelou-se um azar tremendo, pois o impacto do corpo fez o criado-mudo mover-se e sair da trajetória da estante, que caiu logo em seguida, desequilibrada pela tentativa do erudito Kauder de segurar-se nela.
As estantes foram confeccionadas em MDF, na cor tabaco e formavam um conjunto sóbrio, cuja elegância era quebrada pelo emaranhado de texturas e cores formado pelas lombadas dos livros. Elas foram feitas em módulos de dois metros e vinte centímetros de altura por dois metros de largura (com uma separação vertical no meio), e foi um destes módulos que desabou sobre o erudito. Como em todas as estantes, no tampo superior do módulo foram dispostas obras em grandes dimensões, e foram elas que primeiro atingiram o erudito, provocando ferimentos dolorosos mas não sérios. Em seguida foi atingido por volumes menores e mais leves, que provocaram apenas escoriações e, por fim, a estante, com a velocidade da queda acelerada pela ação da gravidade, o atingiu com tal força que o fez desfalecer.
A consciência voltou ao erudito Kauder de forma lenta, parcimoniosa, primeiro como uma sensação de sufocamento, vinda da compressão de seu corpo contra o chão, como se ele pesasse tanto que não tivesse mais forças para mover-se. Depois as dores, em diversas partes do corpo e de diferentes matizes, latejante na cabeça que atingira o piso do cômodo, excruciante no ombro direito que sofrera a luxação ao chocar-se com o criado-mudo, aguda no tornozelo esquerdo partido pela estante. A região do tórax era em si mesma uma miríade de todas as dores que podem acometer uma pessoa, já que a queda da estante, além dos machucados e concussões superficiais, havia lhe partido três costelas, sendo que uma delas perfurara seu pulmão, ferimento que o levaria à morte pelo colapso do órgão, mas não de imediato.
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