Leia a seguir um trecho da obra
(…)
O quarto de Luíza ficou fechado desde que ela se foi. Ou melhor, eu não havia entrado nele desde então. Mesmo antes, na transição de adolescente para mulher jovem, Lúcia e eu o evitávamos, queríamos que ela sentisse que tinha privacidade, um espaço só seu no apartamento. Depois eu fiquei afastado dele para não abrir a ferida, evitar a dor. Algumas vezes, quando Lúcia ainda estava em casa, pensei que poderíamos esvaziá-lo, recolher as coisas de Luíza e doar o que pudesse ser útil, suas roupas, seus calçados, seus livros, seus discos e seus filmes; a cama e a roupa de cama. Deveríamos ter retirado tudo o mais e encaminhado para reciclagem. Seria ao mesmo tempo dolorido e catártico, acho que nos faria bem. Não fizemos e, ao abrir a porta e acender a luz, senti como se a armadura que envolvia meu corpo desde a morte de minha filha tivesse ficado ainda mais pesada. Lembro que olhei para cada coisa, cada pequena coisa, e procurava entender o que representava em sua vida ou qual o sentido que atribuía às coisas que a rodeavam em seu espaço mais íntimo, desde os brinquedos de menina, os pôsteres das paixões adolescentes, até os livros e apostilas de universitária. Em meio aos livros e outros materiais ligados ao Direito, a maioria, encontrei alguns relacionados à questão indígena. À medida que eu descobria o material – alguns de antropologia, outros populares ao estilo de Enterrem meu coração na beira do rio, cópias de livros com carimbo da biblioteca e textos retirados da rede –, sentia meu coração se contrair. Reconhecia naquele material a influência da voz indígena que Luíza nos últimos tempos dizia habitar seu interior, sua forma de se referir à esquizofrenia, e lembrei de quando ela, para firmar sua posição contra o tratamento, nos disse que era mais do que a Luíza, “… sou também essa voz que só existe em mim, e só existe sem os remédios.”
Naquela primeira incursão em seu quarto senti desamparo e enternecimento. Também senti que era importante fazer isso, que deveria ter feito antes. De qualquer forma, cedo ou tarde, estava novamente entre suas coisas, entre seus discos e seus livros, entre os brinquedos que sobreviveram ao tempo, entre suas roupas e calçados. Na sua mesa, uma monografia sobre direito dos povos indígenas estava aberta na página 22. Ao lado, o notebook que havia lhe dado quando entrou na universidade. Eu o conectei à tomada, abri e o liguei; Luíza não havia modificado a senha. No editor de texto os documentos mais recentes tinham nomes que remetiam a trabalhos ou anotações de aula. Um deles chamou minha atenção: caderno de recortes, no qual ela registrara passagens que considerava importantes nos livros, artigos e reportagens que lia. O tema indígena também predominava ali. No inverno passado, muitos registros ligados à atuação de grupos que no final do século dezenove e início do século vinte atacavam os indígenas nas terras onde Lúcia e eu nascemos e crescemos. O último registro traz uma fala que ela atribui a um bugreiro: O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço.
(…)
“Posso pegar um café?”
“Sim, claro, fiz há pouco. Tem copos e xícaras ali”, respondeu o professor apontando para um móvel antigo, e não pude deixar de admirar os adornos entalhados no aparador ao pegar um copo descartável. Coisa que não se faz mais, trabalho de artesão e não produto de linha de montagem. Lancei um olhar pela sala, toda decorada com móveis antigos e bem cuidados, quadros em molduras escuras, pequenas estátuas e objetos decorativos em profusão, duas estantes com livros encadernados em um material que à distância parecia couro. Era exatamente o oposto daquele onde Anton morava, claro e minimalista.
Ouvi a exclamação – “Puta que pariu!” – enquanto ponderava se era prudente adicionar um dedo de uísque ao café. Voltei-me, as imagens em tempo real agora estavam no monitor maior.
Um homem grande, de cabelos curtos e músculos salientes, aquele que o outro Cândido chamou de Tavares, apontava uma pistola para Leoni e disse para ela ir até a mesa de metal fixada no meio do cômodo, em seguida mandou-a tirar a roupa. Ante a inação de Leoni, apontou a arma para sua cabeça. Leoni soltou as alças e o macacão de jeans foi ao chão. Um esgar apareceu no rosto de seu captor quando viu o volume sob a roupa de baixo. Em seguida Leoni tirou a blusa verde com os zeros e uns em precipitação, a mesma que usava quando veio até minha casa, e o restante da roupa.
“Vira de costas, filho da puta, viado do caralho”, disse Tavares e em seguida prendeu uma algema a um dos pés da mesa e a outra na canela de Leoni.
“Vocês se acham assim superior, né, viado? Acha que ficar se vestindo de mulher e dando o cu faz vocês melhor do que a gente, é? Preto sem-vergonha. Pois se fudeu! Todos vocês que ficam dizendo e escrevendo contra a gente, que andam se achando melhor que a gente, que andam com reivindicação, direito, se fuderam. Direito tem quem é gente, não vocês, filho da puta”, ele disse, então encostou o cano da pistola na nuca de Leoni e a fez curvar-se sobre o tampo da mesa.
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